domingo, 22 de novembro de 2009

Eu sei, mas não devia.



Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


(1972)




Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.




O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.


" É assim, sei que poderia ter dado outro rumo a minha vida, mas ao que já me acostumei, a melhor saída é seguir em frente. Meu futuro, esse sim, se estiver em minhas mãos de verdade, segurarei as rédeas com mais firmeza. "

sábado, 7 de novembro de 2009

Um pouco de mim...


Sou uma pessoa normal. Tenho meus defeitos, mas graças à Deus ou aos deuses e claro aos meus amigos, sei que tenho muitas qualidades. Sou sensata, comedida e tenho minhas pitadas de loucura, afinal ninguém é de ferro. Se felicidade for mesmo um estado de espírito, tenho quase certeza que tenho muito mais momentos felizes do que tristes, porém tenho essa tendência depressiva, que muitas vezes me pergunto, por que? E aí, eis um dos meus defeitinhos, prefiro fazer de conta que não sei a resposta. Sou assim, nas horas das crises, preciso do meu mundo, aquele que eu criei pra me defender, silencioso, quase um fundo de poço, pode até parecer loucura, mas não pra mim. É uma fuga. Desço e volto recuperada, ao menos por um tempo, até ficar sobrecarregada novamente.
Sou intensa, e aos poucos fui entendendo que preciso de pessoas intensas também, fico analisando demais, tudo e todos, isso muitas vezes me ajuda, mas em certas situações me faz sofrer, porque dependendo da conclusão que eu chego, tento ser ou fingir o que não sou e por um determinado tempo, até é suportável, só que na maioria das vezes saio machucada, sufocada.
Sonhadora, já realizei alguns, ainda tenho muitos outros sonhos e cada dia luto com mais garra por eles, afinal sonhar e ter esperanças são os sentimentos que movem o ser humano. 
Enfim, agora me sinto bem mais leve, claro que escrever fica longe do bem estar que uma conversa olho no olho, que ouvir o som das palavras da outra pessoa, concordando ou não, opinando ou não, mas ali presente, com seu calor humano, com seu sorriso amigo. Chega. Consegui colocar aqui um pouquinho do que sinto que sou, sou bem mais do que isso, mas deixarei para um próximo texto, com um novo humor e tomara que esteja bem melhor. Também sei que posso ser bem mais e melhor do que só isso.
Tchau, Ro...